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Amores e Desamores

 de Clarice

   de João Cabral

Amor com Incompreensão

Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado:
pensava que, somando as compreensões, eu amava.
Não sabia que, somando as incompreensões,
é que se ama verdadeiramente.
Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
É porque eu não quis o amor solene,
sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda.
E é também porque sempre fui de brigar muito,
meu modo é brigando.
É porque sempre tento chegar pelo meu modo.
É porque ainda não sei ceder.
É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria
– e não o que é.
É porque ainda sou eu mesma,
e então o castigo é amar um mundo que não é ele.
É também porque me ofendo à toa.
É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade,
pois sou muito teimosa.

(Felicidade Clandestina, 1971)

“E o seu amor que agora era impossível,
que era seco como a febre de quem não transpira
era amor sem ópio nem morfina.
E ‘eu te amo’ era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça.
Farpa incrustada na parte mais grossa da sola do pé.
Ah, e a falta de sede.
Calor com sede seria suportável.
Mas ah, a falta de sede.
Não havia senão faltas e ausências.
E nem ao menos a vontade.
Só farpas sem pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas. “

(Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969)

Tudo é olhar

Não te amo mais

Estarei mentindo dizendo que

Ainda te quero como sempre quis

Tenho certeza que

Nada foi em vão

Sinto dentro de mim que

Você não significa nada

Não poderia dizer mais que

Alimento um grande amor

Sinto cada vez mais que

Já te esqueci!

E jamais usarei a frase

Eu te amo!

Sinto, mas tenho que dizer a verdade

É tarde demais…

(Laços de Família, 1960)

(obs. leia este poema também de baixo para cima)

Eu que apareço nesse livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos […] o que me importa são instantâneos fotográficos das sensações — pensadas, e não a pose imóvel dos que esperam que eu diga: olhe o passarinho!

(Um sopro de vida, 1999).

Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? […] No entanto eu já estou no futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes este livro chorai por mim um aleluia […] estou caindo no discurso? […] eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar (Um sopro de vida, 1999).

Os Três Mal-amados

 

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

 

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

 

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

 

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

 

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

 

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

 

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

 

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

 

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

 

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

 

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Contam de Clarice Lispector

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

(Agrestes , 1985)

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